100 anos da UFPR: Reverência e gratidão

A UFPR me fascina e me proporcionou grandes alegrias e oportunidades. E, se no meu peito bate um coração que ama, este coração jamais haverá de negar amor e gratidão a essa emblemática e veneranda instituição, que orgulhosamente completa 100 anos. Ali lecionei por 25 anos. Ali fui aluno de Engenharia e Matemática.
Conheci a UFPR em 14 de maio de 1968. Campeava o regime militar e eclodiam os movimentos estudantis nos mais diversos pontos de Curitiba. A repressão era feroz, e eu não passava de um jovem imberbe e sonhador, recém-chegado do interior de Santa Catarina, compondo uma horda de forasteiros em busca das boas oportunidades que a “cidade universitária” de Curitiba oferecia, com seus 500 mil habitantes. Nesse dia, à prudente distância – pois o instinto de sobrevivência era maior que a coragem – acompanhamos o início da derrubada do busto do Reitor e Ministro da Educação Flávio Suplicy de Lacerda. Em nossas retinas ainda prevalecem as históricas imagens da multidão de estudantes sendo dispersados pelos soldados em torno da Reitoria, esta à primeira vista impactante e majestosa, despida dos prédios que a circundam atualmente.
Em 1970, nós, estudantes de Engenharia, diariamente nos dirigíamos de ônibus ao Centro Politécnico, um lugar ermo e descampado, em cujos estacionamentos superdimensionados para a época pontilhavam alguns poucos Fuscas e Opalas. Engenharia e Arquitetura eram os dois únicos cursos, que de per si, se digladiavam. A provocação se iniciou com um adesivo: “Construa certo, contrate um arquiteto.” E nós revidamos com outro: “Construa certo e com pouco dinheiro, contrate um engenheiro.”
Nós, catarinenses, que representávamos parte considerável da população de Curitiba, éramos alvos constantes de chacotas. Certa vez, tive ímpetos selvagens ao ver que alguém escreveu na porta de um banheiro do Centro Politécnico: “Preserve Curitiba, mate um catarina.” O meu consolo é que hoje aquele escriba pernóstico deve estar passando férias nas praias da nossa bela e Santa Catarina.
Em 1972, a nossa turma de Engenharia recebeu o convite para visitar a construção do Edifício Castello Branco, projetado por Oscar Niemeyer para abrigar os alunos do Instituto de Educação, e que após ampliações converteu-se no Museu do Olho. Ao chegarmos à obra, em meio a um mar de ferragens que prenunciava a laje superior, perpassou em todos nós um sentimento de conspícua reverência diante das inovações do cálculo estrutural, cujos autores eram os nossos dois professores que didaticamente nos conduziam: Freitas Neto e Shido Ogura. A cada 15 minutos ambos subiam em um banquinho para as explanações técnicas: o maior vão livre da América Latina, graças às vigas protendidas de 65 m, tensionadas por 6 cordoalhas de aço, importadas da Suíça, que se moviam para suportar as contrações e dilatações. Nada de subestimar o bipolar clima curitibano. Uma solução genial dos dois professores, numa época em que o cálculo estrutural era essencialmente à base de cérebro e nádegas. Pândegas à parte, nádegas, pois eram meses de cálculos em cima de banquetas e pranchetas. Cérebro, pois os cálculos exigiam grandioso esforço mental. Acessoriamente, usava-se régua de cálculo.
Por muitos anos lecionei no Centro Politécnico, e um dos horários era pouco aprazível: sábado, às 7h30. Como os alunos zoavam na sexta-feira à noite, parte deles chegava atrasada no sábado pela manhã. Um dia resolvi normatizar: tolerância para a 1ª aula apenas de cinco minutos. Depois disso, os alunos entrariam somente na 2ª aula. Em tom de pilhéria, ainda completei:
– Atraso meu, só em caso de morte. Mas, se eu morrer, aviso antes.
Tudo corria muito bem até que, num sábado primaveril, furou o pneu da minha Belina e consequentemente cheguei atrasado. Nenhum aluno na sala, mas no quadro-negro estava escrito em letras garrafais: ”O Jacir morreu”.
Ingressei na UFPR como assistente do Prof. Barsotti, temido pelo rigor de suas provas e elevado número de reprovações. Apesar de sua aparência estritamente racional, na convivência passei a admirá-lo, por ser um profissional criterioso, justo e dotado de grande cultura. Sobre sua mesa de trabalho lia-se uma única frase, em bom latim: “Homo sum; humani ninhil me allenum puto” – verso de Terêncio. Traduzindo: “Homem sou; nada do que é humano reputo alheio a mim.”

Jacir J. Venturi é Professor aposentado da UFPR, Cidadão Honorário de Curitiba, autor dos livros Geometria Analítica (9.ª edição); Cônicas e Quádricas (5.ª edição); Da Sabedoria Clássica à Popular (3.ª edição).