Para tempos bicudos, séries, filmes e novelas que apelem à nostalgia, à leveza e ao bom-humor. Esse fenômeno, que correlaciona a busca de produtos de entretenimento menos densos a períodos de turbulência, foi descrito pelo jornalista Josef Adalian, em publicação na revista norte-americana “Vulture”, em 2017. No texto, o crítico de televisão usa a expressão “comfort food TV” para descrever esse comportamento.
O tema foi revisitado pela pesquisadora Carolina Lima no artigo “Conforto narrativo e a ética do cuidado em tempos pandêmicos”, ainda inédito. Ela explica o verbete cravado por Adalain relaciona o consumo de programas televisivos a um consumo específico de comida, a chamada “comida de conforto”, “termo que se popularizou a partir dos anos 90 no vocabulário gastronômico e se refere a uma comida consumida para o conforto emocional e prazer sensorial”, examina. De um lado, esses alimentos apresentam altos níveis de açúcar e carboidrato, capazes de mitigar um momento de fragilidade ou estresse. De outro, “essa comida está relacionada a escolhas nostálgicas que simbolicamente ligariam as pessoas a grupos ou tendências culturais”, pontua.
Esse aspecto afetivo da alimentação faz lembrar algo que o escritor francês Michel Proust já havia identificado: que o paladar e o olfato possuem a capacidade de despertar memórias e emoções, até então, adormecidas. No caso dele, esse resgate do passado veio acompanhado de bolinhos madeleines e uma xícara de chá em sua icônica obra “Em Busca do Tempo Perdido” (1913- 1927).
Também podem ancorar a busca por conforto emocional os mais diversos objetos do dia a dia, sobretudo aqueles que remetem à infância. Recentemente, uma reportagem publicada pelo portal Uol Tab mostrava como adultos, diante de momentos desafiantes e para aplacar o estresse e a ansiedade, recorriam a uma regressão etária e passavam a se comportar – e a se vestir – como uma criança em idade pré-escolar.
Na comida, nos produtos de entretenimento ou em objetos do cotidiano, a busca por conforto emocional é um atributo comum a todos os seres humanos. É o que crava a psicóloga clínica Fran Ferreira dos Santos. “É natural que a gente busque, rapidamente, apaziguar a dor que sentimos. O que há de diferente no momento atual é que esse se tornou um movimento coletivo, já que todos estamos, em alguma medida, enfrentando as adversidades implicadas pela pandemia. E, nesse sentido, nossas experiências na infância podem ser determinantes nas respostas que vamos oferecer”, situa.
A especialista comenta que objetos com valor sentimental, espécies de “amuletos do bem-estar”, podem ser aliados, nos ajudando a lidar com a ansiedade e o estresse. Da mesma maneira, preparar um prato que desperta em nós bons sentimentos, nos remetendo a situações de acolhimento, pode ser um gesto de autocuidado importante. E o mesmo vale pelo ato de optar por conteúdos mais amenos, uma escolha que pode beneficiar a regulação das emoções.
Carolina acrescenta que esses recursos podem emular uma sensação de compartilhamento e de comunidade, algo importante sobretudo para um cotidiano em que encontros eram desaconselhados.
“O consumo de comfort food, ainda que seja individual, remete a situações de partilha, portanto, a outros momentos de coletividade. Em tempos de isolamento social, estar numa coletividade se tornou um interdito. Portanto, o consumo de narrativas de conforto serviria também a este papel de uma alusão ao coletivo, à aglomeração. Escolher o excesso, o familiar, o repetitivo, o corpo, o coletivo em sua ausência, no momento atual de pandemia e isolamento, corresponde a um cuidado”, escreve a pesquisadora.
Problema. “Embora tenha seu aspecto benéfico, o consumo desses conteúdos e alimentos, e o apego a esses objetos, se o adulto não está potente, pode levá-lo a sucumbir a uma certa infantilização ou pode fazer desses escapes se tornem compulsões. Nesses casos, teremos problemas, pois estaremos, sistematicamente, recorrendo a esses recursos para evitar o enfrentamento de um problema”, adverte Fran Ferreira.
Essa perturbação pode se dar de maneira sutil. “Uma pessoa pode estar convivendo com um ambiente de trabalho hostil, altamente estressor. Ela pode, aparentemente, lidar bem com aquilo. Mas, chegando em casa, deita-se no sofá e puxa uma cobertinha, permanecendo ali, imóvel. De repente, era nesse lugar que ela se sentia cuidada quando criança e, sem perceber, essa pessoa continua repetindo esse padrão em busca de acolhimento. Contudo, ao recorrer a esse subterfúgio, a esse escapismo, ela não consegue avançar e resolver o problema que há por trás daquela imobilidade e angústia”, expõe a psicóloga.
O doutor em psicologia social Cláudio Paixão Anastácio de Paula acrescenta que as formas de buscar conforto a partir de experiências que remetem à infância, embora encontrem semelhanças entre si e sejam motivadas por uma tentativa de contenção, diferem-se umas das outras. Ele cita que, quando essas barreiras se tornam um bunker que passa a apartar o sujeito da realidade, um dos efeitos mais nocivos é a infantilização do indivíduo, que passa a ter menor capacidade para lidar com frustrações.
O estudioso pontua que o comportamento, quando excessivo, pode gerar compulsões alimentares e comprometer relações sociais. “A pessoa pode passar a se pautar por aquele circuito, de forma que ela vai evitar contato com pessoas que não respondam àquelas mesmas referências”, observa.
Freud explica. No artigo “Conforto narrativo e a ética do cuidado em tempos pandêmicos”, Carolina Lima observa que a repetição é uma característica importante da busca por conforto a partir de produtos televisivos. Ela lembra que, na teoria psicanalítica de Sigmund Freud, há o conceito de “compulsão à repetição”, segundo o qual as pessoas repetiriam não apenas o que dá prazer, como o que causa dor.
“O nosso inconsciente seria, por natureza, repetitivo; ele repete achando e ‘reachando’ o significante no intuito de satisfazer o desejo. De maneira simplificada, podemos dizer que, nas teorias psicanalíticas, a repetição desempenha um papel fundamental na cura, a partir da ressignificação do trauma, na relação entre paciente e médico”, expõe.