Ele completou mais de 100 anos de Brasil, mas está longe de ser antigo ou estar datado. Popular, controverso e onipresente, foi alvo de uma polêmica recente por representar gastos de R$ 15,6 milhões pelo Governo Federal, ajudou a salvar a renda de muita gente na pandemia e está na mira de uma disputa por mais autenticidade na gastronomia brasileira.
O leite condensado, na verdade, chegou ao país em 1890, mas sua marca mais famosa, o Leite Moça, acaba de completar um século na mesa dos brasileiros — a contar da data da primeira fábrica da Nestlé no país, em 1921.
Nenhuma outra nação historicamente devotou tantas receitas a ele. Serviu primeiro como bebida (principalmente para bebês e primeira infância, o que hoje seria altamente contraindicado) para depois se tornar o ingrediente mais assíduo da doçaria brasileira — depois do açúcar, é claro.
Mas nem tudo é doce na história desse ícone nacional. “O leite condensado fez a nossa confeitaria ficar preguiçosa, cansativa e pasteurizada”, opina a confeiteira Joyce Galvão. “Pudim é zero brasileiro. Pavê é zero brasileiro. Só que ele foi tão agressivamente inserido na nossa realidade que esses doces passaram a ser tão presentes na nossa mesa que fomos deixando de lado outros doces, principalmente aqueles que exigem preparos mais delicados e demorados”, explica.
Para ela, o uso massivo de leite condensado, por exemplo, além da “lavagem cerebral da indústria no consumidor, usando isso como uma desculpa de afeto”, limitou que o consumidor entendesse que doce bom é doce com leite condensado.
“Isso fez com que nossa doçaria se apagasse, com que o doce de tacho, a fruta cristalizada, aquele bolinho simples fossem deixados de lado. Porque não estava na moda”, diz ela, que é autora do livro Ingredientes para Uma Confeitaria Brasileira (recém-lançado pela Companhia de Mesa).
O ingrediente se tornou tão parte do ideário brasileiro que até mesmo o profissional de confeitaria, para agradar desesperadamente o cliente, passou a usar cada vez mais leite condensado, em um ciclo que se retroalimenta há décadas.
Prova disso, aponta Galvão, é a profusão do brigadeiro nas prateleiras atuais — nas recentes festas juninas, ela diz ter ficado surpresa que até doces tradicionais como Mané Pelado, bolo de milho, broa e cuscuz se transformaram com o leite condensado: “É um tal de brigadeiro de milho, brigadeiro de paçoca, brigadeiro até de pinhão, que limita nossas potencialidades”, defende.
A confeiteira se diz uma fã do brigadeiro (um doce 100% brasileiro feito de um ingrediente importado), apenas defende que não precisamos ficar em cima dele o tempo todo. “Sei que muitas pessoas têm renda com brigadeiro, é um doce fácil de fazer e de vender, e muitas pessoas dependem dele”, reconhece.
Mas ela garante que a doçaria brasileira é — e poderia ser ainda — mais rica do que isso. Não só pela biodiversidade brasileira de ingredientes (temperos, especiarias e frutas, especialmente), mas também pelas influências que tivemos.
“Ela tem um pouco de tudo: sabedoria de escravizados, indígenas, africanos, europeus. Quase nada do que temos de doce é 100% nosso, que não tenha sofrido uma pitadinha de influência”.
No caso do leite condensado, essa “pitadinha” parece ter sido exagerada, como defendem alguns especialistas. Uma reportagem publicada pelo site O Joio e o Trigo mostrou como a Nestlé, a maior fabricante do produto no Brasil, financiou campanhas massivas para sistematicamente criar um receituário nacional à base do ingrediente, não só de doces, mas também de “coquetéis, tapiocas, saladas de frutas”, entre outros.
A reportagem afirma que a Nestlé começou um trabalho de persuasão das professoras de culinária, enviando receitas, materiais, cursos e produtos, o que fez com que as vendas do ingrediente crescessem 25% entre 1960 e 1962.
Procurada pela reportagem, a Nestlé afirma que o leite condensado tornou-se base para 60% das receitas doces brasileiras. A empresa ainda cita dados da Kantar Ibope que assegura que o consumo anual per capita de leite condensado em 2020 no Brasil foi de 6,4 quilos por ano, com presença em 94% dos lares brasileiros, número historicamente conquistado por “grandes campanhas publicitárias divulgadas por meio de rótulos, livros de receitas, material de ponto de venda e principalmente jingles nas rádios e comerciais de TV”.
“Eu não teria elementos para falar se houve propriamente um lobby da indústria para isso”, diz Cristina Leonhardt, que trabalhou muitos anos na indústria de alimentos e hoje é diretora de inovação da Tacta Food School.
“Mas se pensarmos nos anos 1950 até os anos 1970, quais eram as empresas de alimentos que estavam entregando para as pessoas que cozinhavam em casa receitas de como usar os seus produtos? Quais eram as empresas que estavam abastecendo esse mercado de informações?”
A Nestlé certamente foi uma delas: tanto nos próprios rótulos do leite condensado ou em livros e fascículos que eram colecionados por “donas de casa”, a empresa investiu muito em criar e reinterpretar receitas “práticas e que funcionavam bem” e com o ponto sempre certo, em uma tática de marketing transvestida de “prestação de serviços que acabou transformando tanto a cultura brasileira que criou inclusive uma nova cultura culinária [baseada no produto]”, afirma.
Ela defende que esse esforço encontrou eco na necessidade das pessoas na época e, por isso, foi tão bem acolhida pela sociedade. “A cultura estava aberta para isso, era uma ‘dor’ que as pessoas tinham, elas precisavam disso”, pontua.
“Muitas tinham menor poder aquisitivo, fazer uma receita e ela funcionar era algo importante. Se eu sou a cozinheira da minha família e bem ou mal se eu sou valorizada pelas coisas que eu faço dentro de casa, se meu bolo desanda, se meu pudim não cresce, isso fala também com minha autoestima, né? Isso também acaba me desempoderando.”
Ao promover esse laço afetivo e familiar de cuidado que as mães tinham a obrigação de garantir em casa, as campanhas — que traziam frases como “o leite condensado Moça é o contingente apreciável de saborosos pratos” ou livros distribuídos com os dizeres do tipo “Sinhazinha mostrava ser prendada ao retirar do forno a assadeira com um bolo perfumado” — invocavam as mulheres para o uso do produto.
“Obviamente que havia aí também um elemento de machismo, claramente colocando a mulher nesse papel de cozinheira, de cuidado com a família, que aumentou esse estereótipo”, defende. Foi a aposta nele, também, que ajudou com que as mulheres se tornassem influenciadoras do produto, expandindo seu consumo.
A própria criação do ingrediente, aliás, esteve envolvida com outra questão cara às mulheres: a alimentação dos filhos. Ele surgiu originalmente como uma das possibilidades de fórmulas para a amamentação infantil. Primeiro com apelo para as mulheres de classe média alta, que tinham dinheiro para comprar os produtos industrializados e que tinham maior interesse em amamentar artificialmente seus filhos.
Na época vitoriana, que marcou a chegada dos alimentos industrializados na Inglaterra, não era de bom tom que as mulheres amamentassem; tirar o seio em público, então, nem pensar.
“Muitas dessas mulheres não queriam amamentar, perder o formato do corpo, além do fato de que elas tinham várias ocupações sociais, que o ato de amamentar acabava por atrapalhar. É aí que começa esse processo de se tentar desenvolver uma formulação artificial de leite para as crianças, que teve como consequência o leite condensado”, explica Sandra Mian, engenheira de alimentos e consultora em cultura alimentar.
As primeiras campanhas da Nestlé, por exemplo, focavam nesse tema: nutrir os filhos com o produto industrializado. “Senhora: não se aflija com a falta de leite. Há um bom substituto, o único substituto, no qual deve ter total confiança. O Leite Moça”, dizia uma das antigas campanhas.
Outras seguiam exatamente nessa mesma linha de comunicação: “para estimular o crescimento das crianças”, “na merenda, por seu saboroso gosto, o Leite Moça é reclamado com razão”, ou em tom ainda mais apelativo, com o título “a senhora gosta de seu filhinho?” para introduzir as vantagens do consumo pelas crianças.
Essa aposta na alimentação dedicada de “mãe para filho” forjou uma cultura afetiva que fez do leite condensado um dos produtos mais populares no Brasil.
Ainda que em outros países — como México, Índia, Vietnã e Camboja — também haja o consumo do produto, como adoçante ou mesmo como ingrediente em alguns preparos, nenhum outro o consome como nós. A ideia que criamos da sobremesa de conforto foi muito alimentada pelo leite espesso vertido da lata — o pavê, o pudim, etc.
“Isso é prova do seu apelo popular. A textura aveludada, o paladar, o laço que o consumo de leite tem na nossa memória. Também tem um sabor doce, que é algo familiar desde a nossa primeira infância”, afirma Mian.
Apesar das campanhas massivas, ela defende que houve uma adoção da própria população ao ingrediente. “Muitas receitas feitas com leite condensado foram criadas por mulheres, por donas de casa, como é o caso do brigadeiro, que levou o nome do Brasil para o mundo, com uma recente popularização internacional”, diz.
O doce ganhou há cinco meses uma reportagem no The New York Times, o mais influente jornal do mundo.
A engenheira de alimentos acredita que é enviesada a visão de que o leite condensado limitou a doçaria brasileira. “Os doces de frutas, por exemplo, tão tradicionais, não levavam e ainda não levam o ingrediente e seguem sendo feitos e amplamente consumidos no país. As compotas em Minas Gerais, a cocada na Bahia…”, defende.
Sua opinião é que o que o produto fez foi facilitar a produção de doces nas casas das pessoas, que adotaram o ingrediente em suas cozinhas por escolha.
Segundo dados também da Kantar Ibope, entre 2019 e 2020 a penetração de Leite Moça cresceu 23,9% e foram cerca de 3,8 milhões de novos lares consumindo a marca.
“Quando chegou ao mercado, assim como outros industrializados, ele representava a modernidade, o avanço da ciência. Um status que começou nas classes com maior poder aquisitivo e depois se popularizou, ganhando todos os estratos sociais e se tornando o que é hoje”, afirma.
Popular, sim, mas nem por isso menos controverso.