As Olimpíadas de 2020 já são históricas, e não apenas porque ocorrem um ano depois do previsto. De acordo com uma contagem, os Jogos deste ano traz mais participantes que se identificam como LGBTQIA+ do que em qualquer outra edição da competição.
Pelo menos 175 dos 11 mil atletas olímpicos que competem em Tóquio até 8 de agosto são abertamente LGBTQIA+, de acordo com o blog Outsports da SB Nation.
Dos mais de 170 atletas LGBTQIA+, alguns são estrelas conhecidas, como a campeã da Copa do Mundo Feminina da FIFA Megan Rapinoe, a estrela da WNBA, a liga do basquete feminino dos EUA, Brittney Griner e o mergulhador (e agora medalhista de ouro) Tom Daley – todos se assumiram publicamente na última década.
A eles se juntaram novos nomes como Quinn, jogadora de futebol feminino canadense, e a levantadora de peso da Nova Zelândia Laurel Hubbard, ambas transgênero.
A melhora na representação LGBTQIA+ nas Olimpíadas é motivo de comemoração, mas também deve fazer os atletas e o público fazerem uma pausa, pelo menos de acordo com Erik Denison, cientista comportamental da Universidade Monash, na Austrália.
Pela contagem do Outsports, menos de 2% de todos os atletas que competem em Tóquio se identificam como LGBTQIA+ – e, de acordo com Denison, esse número ainda é baixo. Só nos EUA, cerca de 4,5% das pessoas são LGBTQIA+, de acordo com contagem de 2020 do Williams Institute, o centro de políticas LGBTQIA+ da UCLA Law.
“Fizemos um bom trabalho”, disse Denison, que estuda inclusão no esporte, à CNN. “Mas este tem sido um problema importante há tempos. Precisamos começar a fazer algumas perguntas sérias sobre o que está acontecendo aqui”.
Para os pesquisadores que estudam a inclusão nos esportes, existem algumas razões prováveis para a existência de tão poucos atletas LGBTQIA+ nos jogos.
Os jovens ainda são discriminados durante a prática de esportes, o que pode levá-los a parar de jogar completamente, afunilando o caminho para esportes profissionais. Também pode haver atletas LGBTQIA+ competindo nas Olimpíadas que não se sentem confortáveis em se assumir devido a uma cultura dentro dos esportes que ainda depende de estereótipos de gênero e sexualidade.
O número relativamente baixo de participantes que se identificam publicamente como LGBTQIA+ indica que tanto “as culturas esportivas de alto nível, incluindo as Olimpíadas, quanto as culturas esportivas locais mais amplas não se tornaram ambientes verdadeiramente acolhedoras para as pessoas LGBTQIA+”, afirmou Katie Schweighofer, professora adjunta membro de estudos americanos no Dickinson College.
De acordo com o especialista australiano e a professora norte-americana, para melhorar a representação nos esportes profissionais, treinadores e líderes em esportes juvenis devem deixar claro que a linguagem homofóbica e a discriminação sejam inaceitáveis.
Assim, segundo eles, os jovens atletas LGBTQIA+ vão se sentir aceitos por seus companheiros e treinadores, podendo permanecer no esporte até o nível profissional. Mesmo que continuem a praticar apenas por lazer, esses jovens atletas ainda colheriam os benefícios de um ambiente inclusivo.
Nem sempre aceitos
Os Jogos Olímpicos nem sempre aceitaram todos os competidores LGBTQIA+. Os participantes transgêneros foram autorizados a competir na Olimpíada de 2004 – mas, até os jogos de 2020 em Tóquio, nenhum atleta trans havia participado.
Em algumas ocasiões, os Jogos aconteceram em países onde a homossexualidade não é amplamente aceita ou onde a legislação afeta os residentes LGBTQIA+. Os Jogos Olímpicos de Inverno de 2014 em Sochi, na Rússia, foram particularmente controversos pela legislação que proibia a “propaganda LGBTQIA+”, que havia sido assinada menos de um ano antes do início da competição.
As Olimpíadas também têm um longo caminho a percorrer quando se trata de inclusão de atletas intersexuais, o que significa que nasceram com diferenças no desenvolvimento sexual que não se alinham com as definições binárias de feminino ou masculino.
De 1968 a 1998, o Comitê Olímpico Internacional exigiu que os atletas passassem por testes de sexo para “evitar que homens e mulheres disfarçassem a vantagem física ‘injusta e masculina’ de competir em eventos exclusivamente femininos”, escreveram pesquisadores em 2000, quando foi realizada a primeira Olimpíada desde o fim dos testes sexuais.
Em 2018, o World Athletics, órgão internacional que rege as corridas de atletismo e cross country cujos atletas competem nas Olimpíadas, começou a exigir que mulheres com altos níveis de testosterona tomassem medicamentos para reduzir seus índices deste hormônio.
Isso resultou em atletas intersexuais como Caster Semenya, corredora sul-africana, ex-medalhista de ouro e mulher queer, sendo essencialmente proibida de competir a menos que tomasse medicação (o que Semenya se recusou a fazer) ou sendo incentivada a se alterar cirurgicamente.
Homofobia desde cedo
Embora seja significativo ter modelos em Rapinoe e Griner, expoentes em seus respectivos esportes, para melhorar o número desses competidores nos esportes como um todo, o foco deveria ser nas crianças e adolescentes LGBTQIA+ nos esportes amadores, disse Denison.
Se a cultura do esporte continua a excluir essas pessoas desde a tenra idade, o número de atletas profissionais que publicamente se identificam como queer e transgêneros provavelmente não irá subir muito.
A pesquisa de Denison descobriu que a maioria dos atletas LGBTQIA+ abandonam seus esportes quando jovens, um afastamento impulsionado por uma cultura de linguagem homofóbica e estereótipos.
A jogadora de basquete Griner disse em 2014 que ouviu conselhos de seu treinador na Universidade Baylor de não ser tão aberta sobre sua sexualidade. Se a faculdade “tolerasse” sua sexualidade, isso poderia dissuadir os recrutas do programa de atletismo da escola.
Daley disse que embora seja aceito em seu esporte, o mergulho, muitas vezes compete contra mergulhadores de países onde ser gay é criminalizado. E a jogadora de futebol Rapinoe em 2018 disse que, quando criança, “adoraria ter mais informações” sobre o que significava ser gay e por que usar xingamentos homofóbicos era errado.
“Sempre que você ouve alguém dizer ‘isso é tão gay’ ou qualquer coisa do tipo, importa muito”, opinou Rapinoe, que só se revelou para suas companheiras de equipe na faculdade.
Ofensas homofóbicas continuam a prevalecer nos esportes. Um estudo de 2020 chamado Out on the Fields, o primeiro de grande escala a estudar a inclusão LGBTQIA+ nas competições, revelou que mais de 80% dos participantes gays ouviram xingamentos durante as provas e jogos.
Quando treinadores e colegas de equipe usam ofensas, isso envia a mensagem de que a linguagem é inofensiva e certa de ser usada – e, para Denison, solidifica a crença de que todos os membros da equipe são heterossexuais.
O mesmo estudo Out on the Fields relatou que mais de 81% dos homens gays com menos de 22 anos esconderam sua sexualidade para evitar a rejeição de companheiros de equipe ou a discriminação de treinadores ou dirigentes, entre outros motivos.
Mas podemos supor que, em muitos casos, os jogadores gays simplesmente abandonaram o esporte. Isso é um problema para os esportes profissionais: com poucos jogadores gays no esporte, haverá ainda menos atletas profissionais. E os jovens que poderiam ter continuado a jogar por lazer perderão a oportunidade de permanecer ativos e se relacionar com os companheiros de equipe, disse Denison.
“Meninos e rapazes são ensinados a evitar qualquer coisa associada à feminilidade, principalmente fraqueza, emoção e homossexualidade”, explicou a professora Schweighofer, cujo trabalho sobre a inclusão de LGBTQIA+ nos esportes apareceu na revista da National Park Foundation. O mundo dos esportes para homens e meninos ainda está ligado a uma visão muito estreita da masculinidade, com “ideias sobre masculinidade que exigem heterossexualidade”.
Mulheres e meninas nos esportes também são confrontadas com expectativas de gênero. A participação delas em esportes considerados “agressivos”, como rúgbi ou luta profissional, desafia a definição restrita de feminilidade que vê as mulheres como mais frágeis e menos aptas fisicamente do que os homens, disse Schweighofer.
As mesmas normas homofóbicas que afetam os homens nos esportes afetam mulheres e meninas também. Como conta Denison, elas tiveram sua origem no século 19. Enquanto os homens eram encorajados a participar de esportes para flexibilizar sua agressividade e dominação masculina, as mulheres eram desaconselhadas a participar de esportes.
Acreditava-se que essa atividade física extenuante “reduzia sua energia vital” e interferia na capacidade de ter filhos. Mulheres que ignoravam esse conselho e competiam em esportes eram toleradas, disse Denison, mas também se presumia que eram lésbicas que não queriam dar à luz. Os estere??tipos homofóbicos de mulheres atletas, embora não mais baseados na capacidade reprodutiva, persistem até hoje.
Avanços na inclusão
O Comitê Olímpico Internacional (COI) reforçou sua posição sobre a inclusão de LGBTQIA+ nas Olimpíadas nos últimos anos. Em um comunicado sobre o assédio no esporte, o COI informou que os atletas LGBTQIA+ são um dos grupos mais vulneráveis quando se trata de abuso no esporte.
“Ignorância, negação e resistência entre os líderes esportivos – e até mesmo os próprios atletas – costumam ser um desafio para a mitigação e prevenção de riscos”, afirmou a declaração do COI em 2016. “A negação permite que as causas subjacentes do assédio e do abuso persistam” sem controle, criando um ciclo de discriminação.
Defender os atletas LGBTQIA+ sinaliza para esses atletas que o COI os vê, ouve suas reclamações e está trabalhando para melhor atendê-los nos esportes profissionais, segundo o especialista australiano. O COI até deu conselhos para times amadores, reconhecendo as mudanças necessárias na cultura esportiva como um todo.
A inclusão de pessoas LGBTQIA+ nos Jogos ainda pode melhorar, mas os próprios competidores não escondem a alegria de fazer o que amam perante um público internacional.
Quinn, que joga futebol pelo Canadá, disse embora tenha sido orgulho de ver seu nome na programação olímpica, sentia-se “triste por saber que havia atletas olímpicos no passado incapazes de viver sua verdade”.
Quinn também disse, porém, que estava “otimista” com a mudança na legislação. É um sentimento especialmente significativo em um ano no qual mais de 30 estados nos Estados Unidos – país no qual Quinn frequentou a faculdade – apresentou projetos de lei proibindo alunos trans de jogar em equipes esportivas da escola.
“Acima de tudo, eu estou ciente da realidade”, escreveu Quinn no Instagram. “Meninas trans sendo proibidas de praticar esportes. Mulheres trans enfrentando discriminação e preconceito enquanto tentam realizar seus sonhos olímpicos. A luta não está perto do fim … e eu vou comemorar quando estivermos todos aqui”.
Alana Smith assumiu-se como pessoa não binária em uma entrevista coletiva com o resto da equipe de skate dos EUA. Em um post no Instagram após a final feminina de street skate na segunda-feira (26), Smith disse que “escolheu a felicidade ao invés de medalhas” – que ser elx mesmx no palco profissional significava mais do que ganhar ouro.
“De tudo o que fiz, queria sair dessa sabendo que NÃO ESTAVA ME DESCULPANDO por era eu mesmx e estava sorrindo de verdade”, escreveu no Instagram. “O sentimento em meu coração diz que fiz isso.”
Ver atletas LGBTQIA+ competindo com segurança, ganhando ou perdendo, pode inspirar os jovens a segui-los. Mais importante, disseram Denison e Schweighofer, é fazer os jovens se sentirem inspirados e apoiados em anos não olímpicos, começando em suas equipes em casa.